‘Se tudo der errado, viro CLT’: o que está por trás da aversão dos jovens ao trabalho com carteira assinada​

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Crianças e adolescentes associam o modelo CLT a uma rotina dura, com ônibus lotado e bronca de chefe, enquanto influenciadores aproveitam para vender a ideia de sucesso fácil na internet.

Para muitos jovens — e até crianças — ter um emprego com carteira assinada virou sinônimo de perrengue. É o retrato de quem acorda às cinco da manhã e pega ônibus lotado para ouvir bronca de chefe, muitas vezes por um salário mínimo.

Fabiana Sobrinho, de Mogi das Cruzes (SP), foi uma das pessoas que levantou esse alerta nas redes sociais nos últimos meses, ao perceber que sua filha de 12 anos via a CLT de forma negativa, e que o termo já era até usado como ofensa entre os adolescentes.

“Ela dizia: ‘Vou estudar para não virar um CLT.’ Aí eu comecei a questionar e repreender, porque essa fala não fazia sentido. Perguntei o que ela achava que era ser CLT e por que via isso como algo ruim. Conversei com outros adolescentes e todos têm o mesmo pensamento: de que ser CLT é ser fracassado.”

CLT é a sigla de Consolidação das Leis do Trabalho, uma lei brasileira de 1943 que regula as relações de emprego no país. Os chamados “CLTs”, que trabalham com carteira assinada, precisam seguir as regras do regime e têm uma série de direitos garantidos por ele.

Nas redes sociais, a busca pelo termo “CLT” traz uma enxurrada de desabafos e memes sobre o modelo de trabalho. “Fui pegar uma bolsa para usar e olha só que susto”, brincou uma mulher ao encontrar sua carteira profissional. “Imagina ser CLT a vida toda. Deus me livre”, publicou outro usuário.

Historicamente, o emprego no Brasil é visto como algo degradante por causa da cultura da escravidão, afirma a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado. “Os empregos do Brasil, em geral, são mal pagos. As pessoas precisam se deslocar muito, trabalhar demais, ganhar muito pouco e ainda serem maltratadas.”

Jovens também têm buscado formas alternativas de trabalho, como nas redes sociais. “Tive a sorte de começar minha carreira na internet. Tenho pavor de ser CLT hoje em dia. Cresci vendo meus pais querendo só descansar no fim de semana porque estavam cansados da semana de trabalho”, diz Erick Chaves, de 19 anos, conhecido como “Kinho”.

Mesmo com o glamour vendido pelos influenciadores, ter sucesso na internet não é fácil. Em um estudo da University College Dublin, apenas 1,4% das 40 mil contas analisadas superaram 5 mil seguidores em quatro meses.

O discurso contra a CLT pode contribuir para sua degradação moral. Paulo Fontes, professor da UFRJ, alerta: “É ilusão achar que, ao atacar a CLT, você vai conquistar direitos. É justamente o contrário.”

Erick Chaves posta vídeos sobre não querer ser CLT. Ele associa o emprego formal a uma vida difícil, sem tempo para aproveitar. Já Bruna Neres trocou a carteira assinada pelo empreendedorismo e diz ter conquistado mais liberdade e renda.

A pesquisadora Rosana destaca que a insatisfação com o trabalho formal já existe desde os anos 1970. “Não é que as pessoas não querem a CLT, elas não querem empregos ruins.”

Rosana alerta que influenciadores têm explorado essa insatisfação para vender cursos. “Eles surfam nisso para dizer que as pessoas vão enriquecer no digital.”

Desde 2023, Kinho recebe entre R$ 3 mil e R$ 5 mil por mês com redes sociais. Mas reconhece que a maioria das pessoas não consegue crescer online. “O povo do meu bairro me usou como referência depois que eu viralizei e tentou crescer nas redes sociais, mas é muito difícil.”

Alejandro Ferreira, de 17 anos, largou o colégio e fatura até R$ 50 mil com sua empresa de marketing digital. Diz que pretende terminar os estudos, mas só investiria em faculdade se fosse algo estratégico.

O estudo da UCD mostrou que enriquecer com o digital é difícil. Muitas pessoas acabam frustradas ao investir tempo e dinheiro em algo que não traz retorno. Especialmente mulheres de baixa renda, que são atraídas pela promessa de renda extra.

Para Fernanda Smaniotto Netto, designer com carteira assinada, os benefícios do CLT compensam. “Para ser PJ, tem que ganhar praticamente o dobro. E tem a questão da estabilidade.”

Dados da FGV mostram que 67,7% dos autônomos gostariam de ter carteira assinada. E 45% trabalham por conta própria por necessidade, não por escolha.

Antes da CLT, trabalhadores não tinham jornada definida, salários podiam ser reduzidos e não havia controle sobre o trabalho infantil. A lei garantiu direitos básicos e segurança jurídica aos empregados.

O historiador Paulo Fontes afirma que mudanças nas leis são necessárias, mas devem garantir proteção social. “Jogar a CLT fora achando que vai enriquecer é uma ilusão.”

Rosana defende a melhoria da CLT. “Temos que passar a mensagem de que trabalhar, estudar e buscar direitos vale a pena. É isso que os países mais felizes fazem. Mas estamos indo na contramão.”

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